sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Calmaria " Minha rua, minha gente"

CALMARIA

É cedo da noite em nosso antigo apartamento em Goiânia na Praça Cívica e ele naturalmente acabava de arrumar sua mala para a próxima viagem. Inevitável partida.
Olho pela minúscula janela e vejo as luzes da cidade e o grande movimento de carros nas avenidas. Um calor intenso e um cheiro de primaveras invadem o pouco ar que respiro em mais um dia de vácuo.
Mecanicamente pego seus óculos e limpo as lentes com muito cuidado. Precisam estar transparentes para que você veja bem as coisas à sua volta. Confiro seu perfume, seu creme de barbear, seu xampu, suas roupas íntimas delicadamente lavadas e perfumadas por minhas próprias mãos. Abraço com carinho as peças de roupas dobradas com perfeição e sinto o cheiro do mesmo homem. Sem nada pensar, fecho o zíper da mala. Nada pode faltar.
Como de costume recolho a toalha atirada sobre o sofá e as sandálias sobre o tapete da sala. Arrumo o lençol levemente amassado. Lavo a taça de vinho deixada sobre a mesinha de centro e ouço o barulho do elevador. É a mesma linguagem do silêncio.
Lentamente retorno à janela e observo a multidão que se desloca de um lado para outro das avenidas como formigas desencontradas do formigueiro. Questiono-me sobre quem seriam, aonde vão, o que pensam, o que sentem... E se eu fizesse parte desse formigueiro? Talvez pudesse sair do meu casulo de frustração interior.
Entre a dúvida e o talvez, me concentro no elevador. Apago as luzes, fecho a porta do apartamento e abro a rua. Lugar de fuga e enfrentamento dos dramas humanos.
Não sei se há pressa, pressão ou depressão nos meus trôpegos pés que mais uma vez circulam na avenida, misturados a outros pés que também vagueiam sem saber para aonde ir.
Minhas carnes parecem desconhecer o calor da cidade e de novo tremem muito diante do exercício de um olhar para os outros. O som das buzinas, o semáforo cinza (não gosto do vermelho), a iluminação e a decoração das lojas trazem-me uma breve distração enquanto caminho próximo ao meu apartamento.
Apesar da minha dificuldade existencial ainda consigo observar famílias simples que caminham pela calçada e crianças (como são lindas) que se lambuzam comendo churrasquinhos, sanduíches, bolos e milho verde assado. Do outro lado da rua, acompanho vendedores ambulantes que comemoram mais um dia de sobrevivência.
Há poesia no ir e vir das pessoas desconhecidas que transitam entre sorrisos e rugas deslizando vertiginosamente entre uma calçada e outra. Ouço uma risada estridente de uma mulher que passa conversando de forma distraída com uma outra que também sorri.
Durante um longo tempo, sentada no meio-fio da Avenida Goiás, observo atentamente a gente apressada para chegar em suas casas em busca do aconchego e refrigério de alguém que sempre as espera. Eu sempre espero e tenho a esperança de ser esperada também. Um dia...
Respiro profundamente aquele ar inebriante de idas e voltas da vida humana. Meu caminho, entrelaçado ao das pessoas, parece nesse momento ter sentido e finjo renascer, muda no meio da multidão.
Já é meia-noite. Releio a advertência de não romper com os limites. Elevo os olhos para o prédio: é o enlevo e o elevador que me aguardam. Resignada, retorno ao meu nomandismo forçado, ao meu não-lugar. Urdidura difícil de ser destroçada. Mas me sinto bem hoje por ter vivido uma metáfora da calmaria nas noites goianas.

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