sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Viagem : Livro de Ouro do Conto

Meus olhos insistem em olhar para o céu mesmo diante das nuvens escuras e o vento hostil. O ônibus balança no ritmo de um coração ofegante e cansado. As batidas descompassadas das janelas e da mente alucinada anunciam a destruição de uma esperança adormecida.
Na poltrona ao lado, um passageiro sem rosto me diz boa noite e sorri. Minha trêmula boca e gélido nariz banhados pelas lágrimas não lhe retribuem a gentileza. Apenas balbucio alguns soluços incompreensíveis. Ele demonstra naturalidade e fecha os olhos delicadamente.
Concentro-me na estrada e na minha angústia lancinante. Revivo desesperadamente as horas em que o sonho transbordou e iluminou todas as sensações de um ser que há tempos não refletia a respeito do viver e não se emocionava tanto com o pulsar do próprio corpo.
Surpreendentemente, o desconhecido ao meu lado pergunta-me se está tudo bem. Não consigo responder, faltam-me palavras e voz. Talvez ele tenha sentido o estremecer do meu corpo que geme e movimenta-se diferente quando embebido naquela sensação. Ele aparenta tranqüilidade e torna a fechar os olhos lentamente.
Tento esquecer o intrigante homem sentado bem próximo a mim e percebo alguns olhares curiosos a minha volta. Normalmente, eu tinha o sono leve e mesmo depois de dormido sobrevivia a cada minuto da realidade opressora sem questioná-la e muito menos transgredi-la. A ignorância, companheira inseparável, confortava minha ilusão acerca do meu isolamento, das minhas debilidades e sombras.
Agora, entre a sombra imprevisível do desejo e fragmentos da realidade, relembro com êxtase a conversa reveladora, a cumplicidade do sorriso, a aceitação do paradoxo, o reconhecimento do diferente e a abertura para o novo e imprevisível. Dizem que é transferência, carência, ausência...Creio que não é. Sinto que não é.
Fui despertada dos meus pensamentos pelo colega do ônibus que se redobrava em curiosidade para compreender meus gestos e rugas. Questionou-me sem medo de enfrentar meu semblante retorcido, alegando preocupação com a minha saúde.
_ Aconteceu alguma coisa? Você parece muito abatida, tem um olhar distante e cansado. Posso ajudá-la?
Nervosa, não quis vislumbrar sua expressão de espanto quando lhe pedi silêncio. Ele silencia e fecha os olhos calmamente.
Como ser da falta e alheio ao medo, mergulho no colapso da busca incessante de ter e ser o sonho : Alguém. O Ninguém se apresenta fincando a última estaca maliciosa para construir a grade para aprisionar meu débil desejo. Assisto, atônita, o inesperado: o seu silêncio e sua ausência de mim.
A presença do companheiro do ônibus foi notada quando suas mãos tocaram as minhas enigmaticamente. Tinha um cheiro doce e familiar, mas eu não tinha mais olhos, só umidades que embaçavam minha vontade de ver e viver.
Ele abriu-se em gentileza:
_ Gostaria que você voltasse, mas sei que está pregada ao degrau da vigilância da consciência. Se aí é melhor, fique... porém venha ao menos ler comigo o livro prometido, aquele que fala da amplitude.
Ele havia dito naquele momento, tudo o que eu gostaria de ter ouvido daquele misterioso alguém. Pedi ao desconhecido que não tocasse em mim. Ele atende ao meu pedido e torna a fechar os olhos dolorosamente.
A escuridão da noite e a chuva persistente contribuem para fortalecer a estilhaçada imagem construída numa frágil certeza. Estranho Alguém... o pânico não era relembrar os seus gestos de martelo ruidoso pela sala e seus passos percorrendo os espaços da minha alma. O insustentável era olhar nos seus olhos e decifrar o ir e vir do seu corpo. Assim percebi o cerrar da porta com a chave.
De repente, sua pequena distância emudeceu a minha respiração e a desintegração nervosa dos sonhos obrigou-me a juntar meus insignificantes objetos espalhados pelo local. Encabulada e tentando disfarçar meu desapontamento e impotência, levantei-me numa explosão seca e pedi para ir embora. Decisão imediatamente aceita por alguém que nervoso, matraqueava desculpas para tão inusitada situação. Desliguei-me momentaneamente dos seus gestos e agucei os ouvidos para o seu discurso. Hesitei entre verificar os seus argumentos ou juntar os doloridos cacos das minhas emoções. Preferi emendar os retalhos de mim mesma desfiados pela rampa da casa.
Minhas lembranças são interrompidas quando o ônibus freia bruscamente diante do declive acentuado. Sinto a estranha presença do passageiro ao lado. As luzes apagadas do veículo não permitem que eu veja o curioso e atrevido companheiro de viagem. Sinto apenas um leve perfume no ar. Permaneço quieta e pensativa até o meu ponto de descida. Suspiro forte e agarro minha pequena mala. Peço licença ao passageiro que não responde. Insisto em passar pela poltrona e percebo que não há ninguém. Confusa, caminho pelo corredor do ônibus em direção à saída. Olho ao meu redor e nada encontro. Vazio. O motorista abre e fecha rapidamente a porta para que eu enfrente a negra e chuvosa noite. Olho para trás e vejo apenas a porta, sem fechadura.

Um comentário:

  1. Sabe professora Valéria gostei de todos, mas o que mais me chamou a atenção foi este, pelo mistério, pela delicadeza do trato do desconhecido, na beleza da fala leve, suave e inusitado desfecho. Se eu tivesse voz, perguntaria por que não escreveu antes? Se é um dom que a poucos se reflete, extensão de viver, sentir, como o alimento da alma esse extravasar... obrigado pela oportunidade. (cadu...)

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