domingo, 7 de fevereiro de 2010

Minibiografia

Valéria Victorino Valle, 48 anos, 20/03/1962, casada, professora, membro da União Literária Anapolina, da Academia Anapolina de Letras, da Academia Poçoense de Letras, da Academia de Letras Humberto de Campos. Publicações: 6 Livros: A viagem/ 2004; Diálogos /2005; Retrato 4 X 4: A poesia saltitante /2009, Poesia: Um recorte temporal/2010, Memórias dos Escritores da ULA/2010, Um Punhado de Poesia/2010 - Portugal e 48 coletâneas no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Minas Gerais, Pará, Goiás, Santa Catarina e Rio Grande do Sul; Alemanha, Mexico, França e Cairo.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Solidariedade - "Panorama Literário Brasileiro: poesia"

SOLIDARIEDADE

Há um vazio no peito humano,
Um mundo de incompletude perigosa e trágica.
É o recado da frustração e do desgaste interior
Da sociedade embriagada e trôpega
Que reside, resiste e persiste
Na cidade das trevas e da cirrose coletiva.
É o trânsito e a moradia da Falta.
É o devaneio dos tontos, dos desnorteados, dos desestruturados.
Não há lucidez, só há enganos, perdas e desespero.
Na ilusão trágica e vampiresca do ser vivido por outros
Vivemos o abismo indescritível
Dos dramas e das amputações espirituais
Que vivem na próxima espera do porre comunitário.

Mas vislumbramos o dique perfurado das agressões sociais...
Há também um calor no peito humano
Em direção ao ser que sofre, geme e grita.
É a gesticulação da solidariedade humana
Que ainda vive e se compromete com o sonho
De cantar um cântico de esperança
De que é possível recuperar a dignidade perdida.
Solidariedade é força e protesto

Contra a alienação e o caos.
É o socorro, o amparo, o alívio e o ânimo.
É dizer sim a reconstrução, ao recomeço de uma nova história
É o não ao nada e o sim à paz
É o triunfo sobre a destruição e morte da vida.

Soluços do corpo - "Panorama Literário Brasileiro: contos"

Amanheci grávida. Uma felicidade clandestina, doce e obstinada, segue sem atropelos através da manhã de março. Recordo-me do dia anterior e sinto que, mais uma vez, você flutua no meu hálito quente. A imagem do menino vadio e sua voz de leite e mel promovem o meu delírio em lento vôo.
Estranha lucidez a minha... Meu coração é conhecedor de sua liberdade: seu coração não pode ter uma só dona, você é diversos e intensos amores. Mas o seu sopro de sedução invade as minhas veias descontroladamente e diante do seu encanto único e experiente, tombo em seus braços. Se você quer: fico, queimo a razão e a consciência.
Na brisa da lembrança, vislumbro as linhas do seu corpo, ouço o arfar do peito e seu olhar calmo convida para desejar o ritmo que você deseja. São momentos singulares e febris. O seu desejo é começo e tropeço, é fogo e armadilha, sua boca vermelha entreaberta é a grande cilada que laça, prende e sufoca. E na prisão dos seus abraços emerge a fome atroz da sexualidade, é o prazer que desejo e possuo.
Nessa noite de quem sonha amor travesso, na loucura dos primeiros e quentes momentos, você balbucia coisas sem nexo que se transformam em extasiantes ondas de calor. É uma urgência que encosta, desliza e alisa meu corpo entregue e cheio de espera. São emoções imprevisíveis de um sonho antes disperso agora enrijecido e latejante. Há reciprocidade nos olhos suplicantes de desejo e num incrível devaneio aceitei ser a eleita, a favorita. Havia orgulho e pudor em mim. Timidamente senti com intensidade você me cobrir com suas carícias lentas, com perícia suas mãos tateavam meu corpo como arma poderosa: liberdade, encanto e comando. Ainda ecoa forte em mim sua voz murmurando:
_ Vem...Liberte os versos e a poesia...
No descontrole que não busquei, sinto que caí na armadilha do imprevisível: estou impotente e à deriva. No meu corpo sensações indescritíveis e efeitos alucinantes. Seus dedos atrevidos buscam amor urgente e provocam suspiros e murmúrios. Sua boca abriga os meus seios com uma língua afinada e afiada. Não consigo libertar os versos e a poesia com a minha própria voz, assim uso gestos para que você os liberte. Sacio os meus lábios na pele de todo o seu corpo que espera por mim, e com beijos suaves e ardentes, arranco gemidos abafados em compassos ritmados e íntimos: marcas de paixão e explosão. Desfalecemos... transcendemos ... Os corpos entrelaçados se fundem, somos seiva e alívio, úmidos e afogados na belíssima luta de corpos nos lençóis revoltos. Somos dois de desejo, outrora sucumbidos, agora embebidos e embriagados nos soluços do corpo.

Oração do Natal - "(re)Leitura de Natal"

Pai Celestial... É meia-noite. Nesse Encontro Natalino quero
Relembrar as verdadeiras propostas e intenções dessa data tão festiva
Mergulhado no diálogo do silêncio, ouço as diversas vozes fraternas.
E na minha reflexão interior, aprendo a viver o Deus Vivo que nasce
E renasce constantemente na fé e no amor em Noites de Natal.

Bendito seja o Natal! É o derramar de bênçãos e o celebrar da vida com os olhos de Deus.

O renascer e o retornar ao Abraço Divino anunciado pelos anjos
Faz-me mergulhar no coração da caridade e da misericórdia
Dá-me forças para escancarar a porta para o amor de Deus
E sentir o olhar e o beijo do Senhor sobre todas as criaturas.

Bendito seja o Natal! É o derramar de bênçãos e o celebrar da vida com os olhos de Deus.

Somos criaturas perfeitas do Nosso Pai e carregamos diferentes cruzes
Entre a essência do amor e a gravidade do pecado que deprime os homens e denigre virtudes
Muitas aprendizagens: paz, perdão, arrependimento, oração, comunhão e partilha
Um Natal reconstrutor: Confraternização, celebração, revelação e renascimento.

Bendito seja o Natal! É o derramar de bênçãos e o celebrar da vida com os olhos de Deus.

Nessa pausa restauradora entoo e danço cânticos e louvores
Ao Deus criador da forte Palavra, Verbo que nos orienta
E assim, recebemos estímulo, bálsamo e sabedoria nas descobertas humanas
E juntos celebramos a verdadeira dádiva do Espírito Santo de Deus.

Bendito seja o Natal! É o derramar de bênçãos e o celebrar da vida com os olhos de Deus.

O Natal Feliz "Os mais belos textos de natal"

O Natal Feliz

O Natal da Esperança começa no presente.
Numa Noite Feliz, a Estrela Guia
Ilumina o tempo de confraternização
E reencontro com o Verbo Divino.

Os Reis Magos anunciam alegremente
A chegada da hora de vida espiritual:
Um nascimento cheio de Esperança
Um renascimento constante na Paz.

Nasceu agora e para sempre
Deus menino, Pequeno salvador,
Jesus nazareno, Filho de Deus Pai,
Deitado em palhas da Fé
Abraçado aos homens por Amor.

Anjos no Céu e na Terra de mãos dadas
Celebram: é Luz... Maria, Jesus!
A Estrela do Oriente ajuda os sinos a proclamar
O perdão e a união da Humanidade na Glória de Deus.

Coloco o meu sapatinho na janela
Faço um pedido e rezo uma prece de Natal
E desejo de presente e no presente a Fé nascida e
Renascida no Amor e na Paz entre os homens.
Feliz Natal!

Doce Prazer "1ª Antologia de Contos Premiados"

Como todos os seres humanos busco o fator essencial da existência: o prazer. O prazer de sentir, de viver, de vencer e de amar . E nessa eterna busca, a vitória a qualquer preço integra-se aos meus desejos mais íntimos. Sinto uma grandiosa preocupação em dominar as palavras para superar dores e males que afligem o outro; e também uma imensa inquietação no que diz respeito a superar limites do eu. Balbucio:
- Ainda não tenho a palavra...
O caminho integrador entre o eu e outro é pedregulho pontiagudo e o sabor da vitória é desconhecido. Apenas cultivo os pequenos grandes momentos simbólicos que me presenteiam com reflexões das experiências vividas: emoções e ações entre o sido, ser e sendo infinitamente. Afirmo:
- Ainda por fazer a palavra ...
O desejo de voz é intenso e é inconscientemente traçado por estranhos recalques e repleto de sombras. O poder da palavra é ilusoriamente conquistado passo a passo, mesclado de lágrimas de alegria e de sangue das feridas dilaceradas. E no lúdico da ilusão e da persistência, emerge mais vencidos do que vencedores. Admito:
- Ainda não é palavra...
Embalado no sutil jogo da força viva, da poderosa palavra. Assumo:
- Ainda é a palavra...
Como vencedor ao atingir a vitória almejada, traço novas metas, sentindo muitas saudades da inútil batalha outrora travada, pois já foi vivenciado por outros que lutar com palavras é a luta mais árdua e vã. Reafirmo:
- Ainda porvir a palavra ...
Como vencido, agora filtro o que houve de melhor na batalha perdida e aproveito a essência do velho e transformo na fórmula mágica do novo. Se não consigo criar... amalgamo.Constato:
- Ainda não sou palavra...
E vencido, reavivo e ressurjo das raízes, e (re) conheço o gosto de uma nova saudade e de uma próxima luta: dois prazeres indescritíveis. Rumino:
- Ainda a doce e inconquistável palavra...

Doido Linguístico - "Poemas dedicados"

DOIDO LINGÜÍSTICO



No balanço do pensar
É muito desconsertante
Rever o próprio discurso
Numa maltratada página
Que reflete e refrata o discurso do outro.


As palavras ecoam na minha cabeça
Como uma mãe grita a procura de seu filho
Explode a voz confidente
Do sol de fênix ardente
Do nômade da linguagem
É a escrita que namora e desnamora o pensamento
Criando vocábulos grávidos de gente.


É o usar disfarces para poetizar
É o eco: o verso não é meu, nem seu, nem de ninguém
É o gestar e o parir dos textos
Ponto indefinível entre semelhança e diferença
Busca do signo para encontrar ou nunca mais esquecer
E na escrita incorporar o humano e realizar o desejo:
Ser arquivada em forma de letra, imagem e papel.

Movimento dos Sonhos "Poesia de corpo e alma"

A amargura aperta o peito sem pedir licença
Preciso tirar férias de mim mesmo
Assumo compromisso com o sonho:
Rosa noturna onde perder-se é encontrar-se.

Somos movidos a sonhos e parados pelas sensações.

Minha carga interior pesada se despe
No travesseiro para abafar o grito ou choro
Diante da labuta existencial
São devaneios sociais na minha realidade frágil.

Somos movidos a sonhos e empurrados pelas decepções.

E esse devorador de mentes, saciador de amores e dores
Construtor e caçador de tristezas
Provedor e consumidor de esquecimentos
Sepulta a idéia imensa e intensa
Impregnada no mundo que descobre
Como é engraçado ter que viver uma vida sem graça.

Somos movidos a sonhos e acelerados pelas ilusões.

O sonho investe na aceleração absurda da vida
Catapulta o humano para um novo estágio
Cede lugar a vivências passageiras
Nos travesseiros que afofam os discursos:
Os opostos se distraem e os dispostos se atraem
Sem jamais perder o sonho na coisa do Nada.

Somos movidos a sonhos e vividos pelas razões

O Acaso "Retrato 4x4"

O Adão bíblico
O diferente homem
O imprevisto
Os olhos brilhantes
O meu descuido
Os cabelos encaracolados
A displicência
A nova maneira de sentir
O toque inebriante
O abraço denunciador
O afago do peito
As mãos falantes
A oportunidade
A lógica do paradoxo.

Os pés torneados
A doçura no sorriso enigmático
A fragrância em versos exalada
O viajar parado
O gosto insaciável da costela
A vontade de viver teimosamente
O predador de si mesmo
O destilar em versos
O pecado eterno

O diálogo perspicaz
O interesse desinteressado
A boca matemática e carnuda
As marcas e cortes no corpo
A maturidade derretida
O sentido das coisas
O bem querer
Os dentes desalinhados e brancos
A língua irresistível
O ser inexplicável.

A tentação
A sedução
O gosto
O cheiro
O desejo desejante
O indescritível.

Viagem : Livro de Ouro do Conto

Meus olhos insistem em olhar para o céu mesmo diante das nuvens escuras e o vento hostil. O ônibus balança no ritmo de um coração ofegante e cansado. As batidas descompassadas das janelas e da mente alucinada anunciam a destruição de uma esperança adormecida.
Na poltrona ao lado, um passageiro sem rosto me diz boa noite e sorri. Minha trêmula boca e gélido nariz banhados pelas lágrimas não lhe retribuem a gentileza. Apenas balbucio alguns soluços incompreensíveis. Ele demonstra naturalidade e fecha os olhos delicadamente.
Concentro-me na estrada e na minha angústia lancinante. Revivo desesperadamente as horas em que o sonho transbordou e iluminou todas as sensações de um ser que há tempos não refletia a respeito do viver e não se emocionava tanto com o pulsar do próprio corpo.
Surpreendentemente, o desconhecido ao meu lado pergunta-me se está tudo bem. Não consigo responder, faltam-me palavras e voz. Talvez ele tenha sentido o estremecer do meu corpo que geme e movimenta-se diferente quando embebido naquela sensação. Ele aparenta tranqüilidade e torna a fechar os olhos lentamente.
Tento esquecer o intrigante homem sentado bem próximo a mim e percebo alguns olhares curiosos a minha volta. Normalmente, eu tinha o sono leve e mesmo depois de dormido sobrevivia a cada minuto da realidade opressora sem questioná-la e muito menos transgredi-la. A ignorância, companheira inseparável, confortava minha ilusão acerca do meu isolamento, das minhas debilidades e sombras.
Agora, entre a sombra imprevisível do desejo e fragmentos da realidade, relembro com êxtase a conversa reveladora, a cumplicidade do sorriso, a aceitação do paradoxo, o reconhecimento do diferente e a abertura para o novo e imprevisível. Dizem que é transferência, carência, ausência...Creio que não é. Sinto que não é.
Fui despertada dos meus pensamentos pelo colega do ônibus que se redobrava em curiosidade para compreender meus gestos e rugas. Questionou-me sem medo de enfrentar meu semblante retorcido, alegando preocupação com a minha saúde.
_ Aconteceu alguma coisa? Você parece muito abatida, tem um olhar distante e cansado. Posso ajudá-la?
Nervosa, não quis vislumbrar sua expressão de espanto quando lhe pedi silêncio. Ele silencia e fecha os olhos calmamente.
Como ser da falta e alheio ao medo, mergulho no colapso da busca incessante de ter e ser o sonho : Alguém. O Ninguém se apresenta fincando a última estaca maliciosa para construir a grade para aprisionar meu débil desejo. Assisto, atônita, o inesperado: o seu silêncio e sua ausência de mim.
A presença do companheiro do ônibus foi notada quando suas mãos tocaram as minhas enigmaticamente. Tinha um cheiro doce e familiar, mas eu não tinha mais olhos, só umidades que embaçavam minha vontade de ver e viver.
Ele abriu-se em gentileza:
_ Gostaria que você voltasse, mas sei que está pregada ao degrau da vigilância da consciência. Se aí é melhor, fique... porém venha ao menos ler comigo o livro prometido, aquele que fala da amplitude.
Ele havia dito naquele momento, tudo o que eu gostaria de ter ouvido daquele misterioso alguém. Pedi ao desconhecido que não tocasse em mim. Ele atende ao meu pedido e torna a fechar os olhos dolorosamente.
A escuridão da noite e a chuva persistente contribuem para fortalecer a estilhaçada imagem construída numa frágil certeza. Estranho Alguém... o pânico não era relembrar os seus gestos de martelo ruidoso pela sala e seus passos percorrendo os espaços da minha alma. O insustentável era olhar nos seus olhos e decifrar o ir e vir do seu corpo. Assim percebi o cerrar da porta com a chave.
De repente, sua pequena distância emudeceu a minha respiração e a desintegração nervosa dos sonhos obrigou-me a juntar meus insignificantes objetos espalhados pelo local. Encabulada e tentando disfarçar meu desapontamento e impotência, levantei-me numa explosão seca e pedi para ir embora. Decisão imediatamente aceita por alguém que nervoso, matraqueava desculpas para tão inusitada situação. Desliguei-me momentaneamente dos seus gestos e agucei os ouvidos para o seu discurso. Hesitei entre verificar os seus argumentos ou juntar os doloridos cacos das minhas emoções. Preferi emendar os retalhos de mim mesma desfiados pela rampa da casa.
Minhas lembranças são interrompidas quando o ônibus freia bruscamente diante do declive acentuado. Sinto a estranha presença do passageiro ao lado. As luzes apagadas do veículo não permitem que eu veja o curioso e atrevido companheiro de viagem. Sinto apenas um leve perfume no ar. Permaneço quieta e pensativa até o meu ponto de descida. Suspiro forte e agarro minha pequena mala. Peço licença ao passageiro que não responde. Insisto em passar pela poltrona e percebo que não há ninguém. Confusa, caminho pelo corredor do ônibus em direção à saída. Olho ao meu redor e nada encontro. Vazio. O motorista abre e fecha rapidamente a porta para que eu enfrente a negra e chuvosa noite. Olho para trás e vejo apenas a porta, sem fechadura.

Adolescência: Livro de Ouro da Poesia

No escalar das tranças Rapunzel
Vejo derretida a adolescência
Vivida sob inspeção
Sempre a sofrer um não
No meu picadeiro de confusão

Na incerteza da história
Tento reinventar a infância
Procurar fora de mim
A vontade de viver perigosamente
A poesia na risada estridente
A fragrância do verso irreverente

Nessa investida cativante
Encontro amores de lacuna
Gente de saudade
Amigos de verdade
E um amigo cara metade

Roendo vem o tempo, sinal silencioso,
E bóiam saudades
Da infância - era uma vez
Das tranças - certa vez
Da cara metade - única vez

Fome de Poema "Antologia 55"

Nas diferentes maneiras de redigir
Sem penas
É apenas a pena
De desenhar o fio da saliva nas bocas do outro

Um fingir que consome
a fome do poema no poema
Ecos esquecidos e partidos
É o isso e/ou aquilo
Escorridos em linguagem
Umedecida e escorrida
Nas paredes embrutecidas da alma

Num incessante repetir e refazer
Uma conhecida dor de doer dolorida
Busco e preciso de um cânone
Como uma aranha que começa a tecelar
É o espiar, o repetir e o construir
Livrar-se de si e encher-se do outro

Poema meu poema nosso
Brotando como fonte de água
Das construções imaginárias
É a intangibilidade
É a lógica das contradições
Sem medo de invasão sinto
Um pulsar sem compreender
O verbo e o verso do escrever.

Solidariedade "Antologia 54"

SOLIDARIEDADE

Há um vazio no peito humano,
Um mundo de incompletude perigosa e trágica.
É o recado da frustração e do desgaste interior
Da sociedade embriagada e trôpega
Que reside, resiste e persiste
Na cidade das trevas e da cirrose coletiva.
É o trânsito e a moradia da Falta.
É o devaneio dos tontos, dos desnorteados, dos desestruturados.
Não há lucidez, só há enganos, perdas e desespero.
Na ilusão trágica e vampiresca do ser vivido por outros
Vivemos o abismo indescritível
Dos dramas e das amputações espirituais
Que vivem na próxima espera do porre comunitário.

Mas vislumbramos o dique perfurado das agressões sociais...
Há também um calor no peito humano
Em direção ao ser que sofre, geme e grita.
É a gesticulação da solidariedade humana
Que ainda vive e se compromete com o sonho
De cantar um cântico de esperança
De que é possível recuperar a dignidade perdida.
Solidariedade é força e protesto
Contra a alienação e o caos.
É o socorro, o amparo, o alívio e o ânimo.
É dizer sim a reconstrução, ao recomeço de uma nova história
É o não ao nada e o sim à paz
É o triunfo sobre a destruição e morte da vida.

Calmaria " Minha rua, minha gente"

CALMARIA

É cedo da noite em nosso antigo apartamento em Goiânia na Praça Cívica e ele naturalmente acabava de arrumar sua mala para a próxima viagem. Inevitável partida.
Olho pela minúscula janela e vejo as luzes da cidade e o grande movimento de carros nas avenidas. Um calor intenso e um cheiro de primaveras invadem o pouco ar que respiro em mais um dia de vácuo.
Mecanicamente pego seus óculos e limpo as lentes com muito cuidado. Precisam estar transparentes para que você veja bem as coisas à sua volta. Confiro seu perfume, seu creme de barbear, seu xampu, suas roupas íntimas delicadamente lavadas e perfumadas por minhas próprias mãos. Abraço com carinho as peças de roupas dobradas com perfeição e sinto o cheiro do mesmo homem. Sem nada pensar, fecho o zíper da mala. Nada pode faltar.
Como de costume recolho a toalha atirada sobre o sofá e as sandálias sobre o tapete da sala. Arrumo o lençol levemente amassado. Lavo a taça de vinho deixada sobre a mesinha de centro e ouço o barulho do elevador. É a mesma linguagem do silêncio.
Lentamente retorno à janela e observo a multidão que se desloca de um lado para outro das avenidas como formigas desencontradas do formigueiro. Questiono-me sobre quem seriam, aonde vão, o que pensam, o que sentem... E se eu fizesse parte desse formigueiro? Talvez pudesse sair do meu casulo de frustração interior.
Entre a dúvida e o talvez, me concentro no elevador. Apago as luzes, fecho a porta do apartamento e abro a rua. Lugar de fuga e enfrentamento dos dramas humanos.
Não sei se há pressa, pressão ou depressão nos meus trôpegos pés que mais uma vez circulam na avenida, misturados a outros pés que também vagueiam sem saber para aonde ir.
Minhas carnes parecem desconhecer o calor da cidade e de novo tremem muito diante do exercício de um olhar para os outros. O som das buzinas, o semáforo cinza (não gosto do vermelho), a iluminação e a decoração das lojas trazem-me uma breve distração enquanto caminho próximo ao meu apartamento.
Apesar da minha dificuldade existencial ainda consigo observar famílias simples que caminham pela calçada e crianças (como são lindas) que se lambuzam comendo churrasquinhos, sanduíches, bolos e milho verde assado. Do outro lado da rua, acompanho vendedores ambulantes que comemoram mais um dia de sobrevivência.
Há poesia no ir e vir das pessoas desconhecidas que transitam entre sorrisos e rugas deslizando vertiginosamente entre uma calçada e outra. Ouço uma risada estridente de uma mulher que passa conversando de forma distraída com uma outra que também sorri.
Durante um longo tempo, sentada no meio-fio da Avenida Goiás, observo atentamente a gente apressada para chegar em suas casas em busca do aconchego e refrigério de alguém que sempre as espera. Eu sempre espero e tenho a esperança de ser esperada também. Um dia...
Respiro profundamente aquele ar inebriante de idas e voltas da vida humana. Meu caminho, entrelaçado ao das pessoas, parece nesse momento ter sentido e finjo renascer, muda no meio da multidão.
Já é meia-noite. Releio a advertência de não romper com os limites. Elevo os olhos para o prédio: é o enlevo e o elevador que me aguardam. Resignada, retorno ao meu nomandismo forçado, ao meu não-lugar. Urdidura difícil de ser destroçada. Mas me sinto bem hoje por ter vivido uma metáfora da calmaria nas noites goianas.

Apenas um gole "Contos de outono"

APENAS UM GOLE

Mais um dia com o fogo dos velhos goles neste mundo de tragédias. Não há fagulha de luz, só há assaltos por desejos infelizes: tudo arde interiormente e a coragem está destruída. Uma vida vivida e consumida por uma viagem perigosa, recheada de trevas. Sou a alma de um ébrio atordoado que grita e geme. Sou a chaga aberta e cheia de cuspo que queima no frio do isolamento humano.
E, sozinho, não consigo articular na concretude humana, não percebo o sentido de ser, não pratico a amalgamação com o outro, não sinto penetração ou invasão, não vislumbro nem a liberdade nem o aprisionamento...Só há o fechamento das poucas alternativas, só há o esgotamento das raras possibilidades. Sou vago, informe, flácido...
Sou prisioneiro nessa cidade estreita, recheada de restos, destroços e combates. Faço sinais na praia dos zumbis a fim de ser percebido por esta desgraçada e omissa sociedade. Meu código de silêncio estratégico não afeta as muitas pessoas doentes e corruptas que residem nessa cidade. São profissionais da angústia e da miséria que investem na decomposição do ser e existir. Usam máscara e maquiagem nos discursos: é o cinismo institucional que constitui o álcool como uma droga socializada e politizada.
E nesse presídio social, mais um gole de idiotices: brindo atonitamente a um dia sem sol, uma criança sem sorriso, um velho sem saudade e uma vida sem esperança. É a lucidez do etílico que assiste a grande piada da justiça e a cultura da impunidade. Não há respeito às recomendações éticas, só às etílicas.
Não há palavras para falar, dissiparam-se todas. Só há bafo e pupila. É a sociedade que se cala, silencia diante desse câncer social. E assim, sem fala e sem voz, animalizo, embruteço, despersonalizo e bestializo-me. Sinto-me impotente para administrar essa tendência suicida e destrutiva: sou fonte seca e árida que desertificou-se completamente. Seduzido e escravizado pela loucura do álcool, vivo a agonia de ficar sem família, sem trabalho, sem ser alguém, sem dignidade. Balbucio:
- Um brinde ao Nada.
A minha tragédia, o mal do álcool, é também a tragédia da coletividade humana. Despejamos a todo instante, densas placas silenciosas de lágrimas que denotam a amputação dos projetos de vida e de sol em busca da plenitude e realização do homem. Esse vício corta como navalha as relações sociais e familiares, tem a capacidade de transformar o poder do abraço em poder do braço, a violência prevalece, estupra a liberdade e rouba a paz. Ele é capaz de mortificar o sentimento e sepultar qualquer relacionamento, edificando assim imensas fortalezas enormes que impedem o diálogo consigo mesmo e com o outro.
Não há percepção poética da vida e nem do outro. O álcool destrói a veia poética e os encontros com a vida são feitos em clima de tensão, discussão e agressão. As palavras e atitudes são duras, ásperas, venenosas: ossificam...coisificam... E angustiadamente murmuro:
- Estou morto!
É a morte da abertura, da disponibilidade, do partilhar, do compartilhar, da condição de ser e fazer na vida.É a caminhada inexorável para o caos social e a exclusão comunitária. E mesmo na dimensão da morte, ainda procuro ouvir ansiosamente uma voz que me convide para um posicionamento moral, uma vida sóbria, uma prática lúcida, um gesto sensato, um objetivo ético. Não ouço...Estou apoiado na muleta do álcool, preciso da bengala da bebida para encarar os conflitos pessoais, conjugais e sociais. E desesperadamente choro e grito:
- Estou sangrando, minhas cicatrizes estão abertas, sinto o gosto amargo do fracasso...Sinto-me asfixiado...desfaleço diante da crise...estou morto. Preciso ingerir mais alguns goles de ilusão.
É o corpo que engole todos os estágios da destruição e da morte prematura do ser: a tolerância da bebida, a dependência física, (in)consciência da necessidade com maior freqüência e quantidade, distúrbios psicológicos e emocionais, a subjetividade e o intelecto atingidos drasticamente. É o lamento compulsivo da sociedade alcoólatra que pluraliza a experiência destruidora do álcool: uma droga que tem uma imensa capacidade de conquistar e nunca se deixar conquistar.
A sociedade egoísta e hipócrita não quer ver a alma, o interior do alcoólatra. Ninguém tem tempo para ouvir um pouco do lamento e da angústia que sai do peito de um homem que está aprisionado neste pesadelo.Ninguém quer ouvir as queixas, os ais, as rixas, as feridas sem causa, os olhos vermelhos de um alguém encabrestado pela droga. Poucas pessoas compreendem a sensibilidade de um alcoólatra, um ser perceptivo às contradições e as esquisitices da história humana que se recusa a enxergar um mundo tão sem sonho e sem a magia da esperança.
No caminho para se perder o sentido do viver , esbarramos em cacos e restos espalhados pelos bares e festas da vida: a prostituição, a traição, a falsidade, a inexpressividade, a fuga, a transitoriedade, a futilidade, o cinismo, a mentira, a perversidade, a desgraça... Assim, a visão a respeito da vida desintegra-se e desarticula-se. É a despersonificação social dramática e irreversível. O ébrio torna-se uma ilha solitária que segue gemendo sua solidão nos bares, fazendo da boemia sua parceira na solidão e do copo o sócio de sua condição de miserável impotente e abandonado.
E nessa viagem sem volta, a única linguagem existente é aquela que gera a dor, o lamento, o sofrimento, a amputação, o drama e o desespero. Como companheiros inseparáveis dessa viagem temos a apatia, a negação da vida, o abortamento da realização, o corte na construção e a ruptura com o amanhã.
Chega ao fim a novela interminável da desgraça que tudo inferniza. Não há esforço de restauração e recuperação da dignidade de ser simplesmente gente. Comemoro tal constatação com novos goles e gritos:
- Deus! Sem futuro lúcido, sem projeto para o hoje, sem sonho, sem objetivo, sem sentido, realmente estou morto e enterrado vivo por mim mesmo e pelos outros. Um único gole! Um gole cheio de desespero será tomado em homenagem à sociedade e sua solidariedade. Um brinde especial...À Morte.

Tempo de Escrever "Anápolis Centenária"

Aqueles olhos
Aquela boca
Aquela voz
Perseguiam-me há alguns anos
A existência de Ana...

Abriu o sorriso perfeito e estacou:
Uma sensação agradável de segurança invadiu-me.
Um tremor inesperado e irresistível
Sacudia meu coração em frangalhos:
Eis a presença poderosa do ato de escrever.

Disse quase inconscientemente que já a esperava
Ou esperava por aquele momento para encontrá-la.
Indeciso se continuava parado ou prosseguia,
E sempre instável e trôpego,
Senti medo desse imponente destino:
O de escrever incontrolavelmente.

Celebrei a tradição anapolina:
O medo de escrever abandonava-me.
Ao quebrar a minha mesmice de vida,
Quebrei também o silêncio estranho
De não ter coragem de mostrar
Idéias, sentimentos e valores humanos.

E na fome de redigir e poetar
A dor e a alegria se fundem
Um paradoxo de sorte e de sina
Saga de um filho pobre e nobre
Que ainda voa com as asas de antigos escritos
Renovados a todo instante
No centenário da cidade.

Sinto, vibro e registro a escrita ruminante,
Bebo lentamente num copo literário
Cheio de imprevisibilidades,
Os interessantes textos dos homens
Que atam e desmancham laços
Do inevitável encontro
Da inexplicável utopia
Na infindável fantasia
Desses anapolinos construtores.

E na ordem absoluta da linguagem
Há corações pulsantes
Mergulhados no caminho da poesia...
Arte, vida e prazeres de várias tramas,
Nexos imponderáveis de vida e morte,
Conflitos intensos dos poetas de Anápolis,
Simplesmente loucos pelo tempo de escrever.

DENEGAÇÃO - Publicado no livro "A viagem"

DENEGAÇÃO

Ora, acontece que vislumbro um estranho sorriso em meus lábios. Constato assombrada que opto por viver na ignorância, não quero saber do espelho. Assumo, sumo e sou sombra.
Meus nervos existenciais trepidam no áspero caminho do impossível encontro e revejo saudosamente o vir-a-ser que não se tornou. As reinvenções dos meus desejos afloram e não são percebidas por mim e por outras sombras que também correm nebulosas para o sepultamento da missão interior.
Minha face é a face da noite. Sou a graúna selvagem e triste que perfura as estrelas escuras que circulam as memórias individuais e coletivas.
Meus ouvidos estão atribulados com os sons inquietantes e constantes que estremeceram minha moldura especular abandonada há tempos. Um barulho ensurdecedor que dói, rói e destrói a serenidade e a esperança.
Inesperadamente, vi surgir um enigmático vulto que assanhou a minha curiosidade. Contemplei o vulto, achei-o lindo. Cautelosa, com medo de ser repreendida, respirei o seu hálito e senti que era denso, quente e tinha cheiro de deliciosa refeição.
Minha boca exilada, porém ávida de respostas, pergunta impaciente:
- Você é uma sombra?
- Naturalmente. - Ele me respondeu passando as mãos delicadas pelos longos cabelos.
- Você saiu do espelho? - Perguntei-lhe com crescente curiosidade.
- Que bobagem! Sempre estive aqui com você. - Acrescentou fitando-me com os olhos arregalados, roçando no meu rosto.
- Como assim? - Indaguei desajeitada e incerta diante dos seus braços envolventes.
- Essa é a nossa casa, já se esqueceu... - Disse sem estranheza, esperando que eu o abraçasse.
- Pensei que fosse uma sombra. - Balbuciei confusa, demorando aceitar a sua presença.
- Outra bobagem! Por que eu seria uma sombra? Eu só estava silencioso. - Falou com diabólica beleza.
- Quem é você? - Questionei agora com voz assustada, porém firme.
- Sou o que você construiu... - Murmurou sedutoramente.
- Você é uma sombra? - Perguntei gritando desesperada.
- Pode gritar, não há ninguém em casa - Disse-me sem piedade.
No torpor do desconhecido, meu olhar mendigo e ateu naufraga no silêncio de prisão e tortura do espelho contorcido e distorcido pelo eixo das sombras. São sensações vorazes e melancólicas que sacrificam a idéia imensa e intensa da alma estancada.
E ele acrescentou sinistramente:
- Sou a sua criatura...a recusa da realidade.