sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

DENEGAÇÃO - Publicado no livro "A viagem"

DENEGAÇÃO

Ora, acontece que vislumbro um estranho sorriso em meus lábios. Constato assombrada que opto por viver na ignorância, não quero saber do espelho. Assumo, sumo e sou sombra.
Meus nervos existenciais trepidam no áspero caminho do impossível encontro e revejo saudosamente o vir-a-ser que não se tornou. As reinvenções dos meus desejos afloram e não são percebidas por mim e por outras sombras que também correm nebulosas para o sepultamento da missão interior.
Minha face é a face da noite. Sou a graúna selvagem e triste que perfura as estrelas escuras que circulam as memórias individuais e coletivas.
Meus ouvidos estão atribulados com os sons inquietantes e constantes que estremeceram minha moldura especular abandonada há tempos. Um barulho ensurdecedor que dói, rói e destrói a serenidade e a esperança.
Inesperadamente, vi surgir um enigmático vulto que assanhou a minha curiosidade. Contemplei o vulto, achei-o lindo. Cautelosa, com medo de ser repreendida, respirei o seu hálito e senti que era denso, quente e tinha cheiro de deliciosa refeição.
Minha boca exilada, porém ávida de respostas, pergunta impaciente:
- Você é uma sombra?
- Naturalmente. - Ele me respondeu passando as mãos delicadas pelos longos cabelos.
- Você saiu do espelho? - Perguntei-lhe com crescente curiosidade.
- Que bobagem! Sempre estive aqui com você. - Acrescentou fitando-me com os olhos arregalados, roçando no meu rosto.
- Como assim? - Indaguei desajeitada e incerta diante dos seus braços envolventes.
- Essa é a nossa casa, já se esqueceu... - Disse sem estranheza, esperando que eu o abraçasse.
- Pensei que fosse uma sombra. - Balbuciei confusa, demorando aceitar a sua presença.
- Outra bobagem! Por que eu seria uma sombra? Eu só estava silencioso. - Falou com diabólica beleza.
- Quem é você? - Questionei agora com voz assustada, porém firme.
- Sou o que você construiu... - Murmurou sedutoramente.
- Você é uma sombra? - Perguntei gritando desesperada.
- Pode gritar, não há ninguém em casa - Disse-me sem piedade.
No torpor do desconhecido, meu olhar mendigo e ateu naufraga no silêncio de prisão e tortura do espelho contorcido e distorcido pelo eixo das sombras. São sensações vorazes e melancólicas que sacrificam a idéia imensa e intensa da alma estancada.
E ele acrescentou sinistramente:
- Sou a sua criatura...a recusa da realidade.

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