quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Apenas um gole (Livro Contos de outono) 2009

Mais um dia com o fogo dos velhos goles neste mundo de tragédias. Não há fagulha de luz, só há assaltos por desejos infelizes: tudo arde interiormente e a coragem está destruída. Uma vida vivida e consumida por uma viagem perigosa, recheada de trevas. Sou a alma de um ébrio atordoado que grita e geme. Sou a chaga aberta e cheia de cuspo que queima no frio do isolamento humano.
E, sozinho, não consigo articular na concretude humana, não percebo o sentido de ser, não pratico a amalgamação com o outro, não sinto penetração ou invasão, não vislumbro nem a liberdade nem o aprisionamento...Só há o fechamento das poucas alternativas, só há o esgotamento das raras possibilidades. Sou vago, informe, flácido...
Sou prisioneiro nessa cidade estreita, recheada de restos, destroços e combates. Faço sinais na praia dos zumbis a fim de ser percebido por esta desgraçada e omissa sociedade. Meu código de silêncio estratégico não afeta as muitas pessoas doentes e corruptas que residem nessa cidade. São profissionais da angústia e da miséria que investem na decomposição do ser e existir. Usam máscara e maquiagem nos discursos: é o cinismo institucional que constitui o álcool como uma droga socializada e politizada.
E nesse presídio social, mais um gole de idiotices: brindo atonitamente a um dia sem sol, uma criança sem sorriso, um velho sem saudade e uma vida sem esperança. É a lucidez do etílico que assiste a grande piada da justiça e a cultura da impunidade. Não há respeito às recomendações éticas, só às etílicas.
Não há palavras para falar, dissiparam-se todas. Só há bafo e pupila. É a sociedade que se cala, silencia diante desse câncer social. E assim, sem fala e sem voz, animalizo, embruteço, despersonalizo e bestializo-me. Sinto-me impotente para administrar essa tendência suicida e destrutiva: sou fonte seca e árida que desertificou-se completamente. Seduzido e escravizado pela loucura do álcool, vivo a agonia de ficar sem família, sem trabalho, sem ser alguém, sem dignidade. Balbucio:
- Um brinde ao Nada.
A minha tragédia, o mal do álcool, é também a tragédia da coletividade humana. Despejamos a todo instante, densas placas silenciosas de lágrimas que denotam a amputação dos projetos de vida e de sol em busca da plenitude e realização do homem. Esse vício corta como navalha as relações sociais e familiares, tem a capacidade de transformar o poder do abraço em poder do braço, a violência prevalece, estupra a liberdade e rouba a paz. Ele é capaz de mortificar o sentimento e sepultar qualquer relacionamento, edificando assim imensas fortalezas enormes que impedem o diálogo consigo mesmo e com o outro.
Não há percepção poética da vida e nem do outro. O álcool destrói a veia poética e os encontros com a vida são feitos em clima de tensão, discussão e agressão. As palavras e atitudes são duras, ásperas, venenosas: ossificam...coisificam... E angustiadamente murmuro:
- Estou morto!
É a morte da abertura, da disponibilidade, do partilhar, do compartilhar, da condição de ser e fazer na vida.É a caminhada inexorável para o caos social e a exclusão comunitária. E mesmo na dimensão da morte, ainda procuro ouvir ansiosamente uma voz que me convide para um posicionamento moral, uma vida sóbria, uma prática lúcida, um gesto sensato, um objetivo ético. Não ouço...Estou apoiado na muleta do álcool, preciso da bengala da bebida para encarar os conflitos pessoais, conjugais e sociais. E desesperadamente choro e grito:
- Estou sangrando, minhas cicatrizes estão abertas, sinto o gosto amargo do fracasso...Sinto-me asfixiado...desfaleço diante da crise...estou morto. Preciso ingerir mais alguns goles de ilusão.
É o corpo que engole todos os estágios da destruição e da morte prematura do ser: a tolerância da bebida, a dependência física, (in)consciência da necessidade com maior freqüência e quantidade, distúrbios psicológicos e emocionais, a subjetividade e o intelecto atingidos drasticamente. É o lamento compulsivo da sociedade alcoólatra que pluraliza a experiência destruidora do álcool: uma droga que tem uma imensa capacidade de conquistar e nunca se deixar conquistar.
A sociedade egoísta e hipócrita não quer ver a alma, o interior do alcoólatra. Ninguém tem tempo para ouvir um pouco do lamento e da angústia que sai do peito de um homem que está aprisionado neste pesadelo.Ninguém quer ouvir as queixas, os ais, as rixas, as feridas sem causa, os olhos vermelhos de um alguém encabrestado pela droga. Poucas pessoas compreendem a sensibilidade de um alcoólatra, um ser perceptivo às contradições e as esquisitices da história humana que se recusa a enxergar um mundo tão sem sonho e sem a magia da esperança.
No caminho para se perder o sentido do viver , esbarramos em cacos e restos espalhados pelos bares e festas da vida: a prostituição, a traição, a falsidade, a inexpressividade, a fuga, a transitoriedade, a futilidade, o cinismo, a mentira, a perversidade, a desgraça... Assim, a visão a respeito da vida desintegra-se e desarticula-se. É a despersonificação social dramática e irreversível. O ébrio torna-se uma ilha solitária que segue gemendo sua solidão nos bares, fazendo da boemia sua parceira na solidão e do copo o sócio de sua condição de miserável impotente e abandonado.
E nessa viagem sem volta, a única linguagem existente é aquela que gera a dor, o lamento, o sofrimento, a amputação, o drama e o desespero. Como companheiros inseparáveis dessa viagem temos a apatia, a negação da vida, o abortamento da realização, o corte na construção e a ruptura com o amanhã.
Chega ao fim a novela interminável da desgraça que tudo inferniza. Não há esforço de restauração e recuperação da dignidade de ser simplesmente gente. Comemoro tal constatação com novos goles e gritos:
- Deus! Sem futuro lúcido, sem projeto para o hoje, sem sonho, sem objetivo, sem sentido, realmente estou morto e enterrado vivo por mim mesmo e pelos outros. Um único gole! Um gole cheio de desespero será tomado em homenagem à sociedade e sua solidariedade. Um brinde especial...À Morte.

Borboleta (Livro Retrato 4x4) 2009

Numa imagem kafkaniana, vejo o Eu inseto sempre transfigurado com um diferente olhar e o mesmo silêncio. Não é o demônio que se instalou na minha história, é a minha desertificação da condição humana, negra e impiedosa que se manifesta.
Falta-me um corpo feminino e o único soma que resta está recheado de monólogos que tecem fios ensangüentados e doentios do meu desejo de transfigurar. Minha boca distorcida em gritos e minhas retinas saltitantes foram sugadas pelo temporal do nada.
É a criança do medo e do fantasma que foi doada aos seus perseguidores e devedores.
É o tecer de memórias e estórias transformadas em degeneração solitária que acaricia minhas asas e meu insignificante invólucro.
Revivo uma estranha época de pessimismo crônico que não reconhece o hoje e não celebra o amanhã. Uma peça trágica que me esconde nas paredes da ilusão e trancafia-me no negro e impiedoso inferno sussurrando: mate-se!
Fecho as janelas da alma e as constantes gotículas úmidas já não mais lubrificam os meus olhos. Vivo um basta muito especial nessa noite diferente de outras já passadas ao lado da morte. Estou sem voz e sem espaço, é o falso combustível da vida humana que nos obriga a cair na imensidão do abismo. Uma mísera vida a sofrer e constantemente representar as tragédias alheias, num interpretar de papéis que fogem sem saber para aonde ir e morrem no prazer da dor de co-existir.
Previsivelmente, recebo um convite inebriante para o refrigério, o bálsamo: o espaço sem explicação. Sinto a sua presença e o toque de seus dedos frios e decididos em meus braços, a voz que queima em mim, coze percursos rubros, diferente dos cânones já vistos. Alguém que abre caminho na maciez da nuvem incolor, num tapete de linho branco registrando por escrito os sonhos esquecidos e tecidos nas reminiscências das crianças sobreviventes do medo, mas que nunca desencantaram da ternura e não desistiram das cinzas sempre revividas na natureza humana.

Menina Centenária (Livro Anápolis Centenária) 2007

Sou menina estabanada
Na arte de reparar e divisar.
Sem medo de invasão
Cavo trincheiras
Sem desistir e nem sufocar.


Sou o que sou
E vigilante na escuta
Vou tecendo mais labirintos
Sendo para ser
E sei...
Sou experiente em não ser
E nessa maravilhosa vida
Só sei
Existir sem medida
Na medida do meu povo.


Não posso me esquecer
Que consigo renascer,
A qualquer hora
E em cada ser,
Na história, na memória e na cultura.
E nesse encanto
Conto, reconto, triconto e ticonto:
Sou a centenária menina
Que insiste em viver.


Vivo viajando parada
Viagem de dentro e adentro
Da história
Viagem pra dentro e
Uma via pra fora
Da memória
Anapolina.





O de dentro não vê,
Ainda não ouve, não responde
Ainda não pode andar...
Resta ir de pés nus
Lá dentro e cá fora
Para lembrar o esquecido:
Um século registrado na
Palavra saborosa da história,
Um século bem vivido na
Palavra deliciosa da memória.

Lembrar de ser
Em mim,
A linda cidade que sou,
Tremer sem temer
O tempo desbotado
Crer que cem anos
Não podem ser simplesmente lavados...
É o celebrar simbólico
Da cultura anapolina
Que brinca de viver
Eternamente
Nas travessuras de menina.

Retorno - (Livro A Viagem) 2005

Há luminosidade demais nesse estranho lugar e eles ofuscam a minha concepção de universo. O chão está instável e oscila como as doloridas sensações do meu cérebro. Apesar do medo, preciso enxergar e apenas vejo a terra amarela e molhada, as rosas brancas murchas, a pá e as lágrimas quentes como meu hálito e soluços sufocados.
Há sol ardente nessa triste tarde e ele não seca a densa água que insiste em brotar na minha face fria. Essa umidade faz meus olhos rasos e fixos no momento de só-ida e sem-volta. Ai, como dói a dor do ir e não ver e vir jamais... Um doído intenso. Uma angústia latejante diante da resposta para as perguntas “Onde está você?” e “E eu?”
Sinto uma estranha surpresa ao perceber que existem pessoas a minha volta e elas também choram impotentes diante da pesada laje de cimento e as leves flores atiradas sobre ela.
As imagens agora se distorcem e circulam o meu corpo de maneira absurdamente rápida. As cores das roupas e das flores misturam-se e não sei exatamente identificar os objetos que me circundam, só sei que esse louco movimento traz frescor e alívio. Vejo você e você... Olhos perspicazes, irreverência constante, senso de justiça aguçado, semblante sereno e amabilidade constante. Posso sentir o seu corpo firme ao meu lado, as mãos macias , o beijo doce, o toque suave, o cheiro adocicado e os passos determinados.
Não há mais luz intensa, só há lucidez. Mergulhados um no outro caminhamos decididos por entre os estreitos jardins e pequenas casas vizinhas à sua. Conversamos sobre as bobagens, as instabilidades e os absurdos do nosso antigo mundo intangível : Vida e morte.
Límpida é a sua voz quando fala dos assuntos complexos dos seres humanos como o amor e o luto, efemeridade do sentimento e da vida. Você tranqüilamente diz:
_ Querida, são apenas faltas e ausências... Você já sabe.
Não há lágrimas nos meus olhos, só há a boca entreaberta que bebe as palavras doces e conhecidas. E antes mesmo que eu possa engoli-las, você se afasta deslizando suavemente pelos caminhos percorridos por nós dois. Olha em minha direção, sorri e acena um breve adeus.
Não há nitidez nas imagens e na minha débil mente, o redemoinho colorido volta e arrasta-me para o sol escaldante e para o burburinho das pessoas. O barulho de vozes confusas e dos gemidos cansados mostra a saída. Hesito em segui-los, pois preciso encontrar você. Avanço alguns passos e sinto a umidade nos sapatos. Retorno. É a terra amarela e molhada. Pá. Tijolos. Cimento... Ergo a pequena parede que impede momentaneamente o nosso encontro.
Não há o ar que respiro, mas há o seu sopro de vida em mim. Sigo seus laços e passos. Caminhemos... Caminhemos, pois ainda não atirei a minha rosa branca sobre a laje.

Seca - (Livro Diálogos) 2004

Desculpe-me se,
Balbuciei e escancarei o meu discurso.
É a imaturidade e o êxodo existencial.
Encontro-me perdida na própria interioridade humana.
O nervo da crise está exposto,
Experimento o gemido do niilismo
E só enxergo retiradas estratégicas hipócritas.
Talvez o meu processo de “avestruzamento”
Seja uma forma de manter-me viva
De andar para não morrer.
Desculpe-me se o agredi com a minha desordem interior.
É a crise de cada dia.
Desculpe-me
Por estar fora da sua pré-visão
Por perder os pontos de interrogação
Por não acontecer na tribulação
Por não ter futuro e nem pra dentro
Por não descortinar o belo psicológico.
Desculpe-me
Por ser o cansaço da caminhada
Por ser Hagar que vive a ausência da espera e da esperança
Por ser Severina que não preserva mais o sonho
Por ziguezaguear titubeante pelo oásis
Por ser negação da esperança
Por adoecer, ficar na cama e entrar em coma
Por ser negociante no crediário avesso da morte
Por ser o o ex, o des e o res na urdidura da vida
Por ser conflito, desagregação e tragédia
Por ser a tragédia de esperar o que só nos faz desesperar
Por ser a morte trágica da fantasia.
Desculpe-me
Por ser o ainda-não
Por ser o ainda não é
Por ser o ainda por fazer...
Não há choro, não oro
Só há o esvaziamento.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Relação minha vida / minha obra

Quem se mete a poeta é louco, eu sei...
Mas que fazer quando não se tem rosto e nem memória?
Que fazer quando esse enorme tédio da vida
Invade a fábrica de suplício que tenho?
Como lidar com a angústia de ser o fingidor
E ser aclamado de idiota?
Como deixar de ouvir essa voz interior
Presente em mim e ausente no outro eu?
(Fragmento do poema Ardência de poeta- Diálogos- 2005)